Contradições e resistências marcam o novo Código

 

Contradições e resistências marcam o novo Código

Contradições e resistências marcam o novo Código

 

Por Benedito Cerezzo Filho

No conto intitulado “A Igreja do Diabo”, Machado de Assis, com sua sabedoria ímpar, retrata a eterna contradição humana, capaz de causar abespinhamento ao próprio Diabo. Esta contradição permeou as discussões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil votado recentemente na Câmara dos Deputados. As manifestações, a favor e contra a aprovação do projeto, variaram de argumentos apelativos a previsões futurísticas. Neste contexto, muitos migraram de lado – apoiando ou refutando a aprovação da proposta, às vezes por convicção ou, até mesmo, por ter sido convidado a assessorar este ou aquele parlamentar na Câmara dos Deputados.

É evidente que o debate e a opinião, além de fundamentais, são frutos do regime democrático, mas é preciso tentar entendê-los. A alteração na Câmara, quanto ao “efeito suspensivo” da sentença, custará muito caro à intenção de se projetar um novo e eficaz cenário prático-processual às causas cíveis no Brasil.

Da gramática à prática, parece ser consenso o fato de que o processo civil exala uma morosidade inaceitável. Por isso, seria trivial que o projeto de um novo código enfrentasse com agudez as causas dessa “morosidade”. Assim, não precisa muito esforço intelectual para se concluir pela necessidade de racionalização do trâmite das ações e, por via oblíqua, pela divisão do tempo do processo entre as partes interessadas na decisão judicial.

No novo, prestigiou-se o velho, manteve-se a morosidade em detrimento da efetividade

Muito embora a reforma processual levada a efeito em 1994, pela Lei nº 8.952, que instituiu a antecipação da tutela (arts. 273 e 461), tenha mirado justamente este objetivo, dividir o ônus do tempo entre os litigantes, a duração do processo ainda ficou a depender, na maioria dos casos, da concordância do réu com a “justiça” da sentença.

Ao seu alvedrio, a fase cognitiva será encerrada ou não. Em outras palavras, o bem da vida disputado em juízo só sairá da sua esfera patrimonial caso queira. A simples interposição de um recurso de apelação, ainda que desprovido de fundamentos jurídicos capazes de reformar a decisão de primeira instância, tem vocação inarredável de impedir o trânsito em julgado e, assim, permitir que todo o tempo gasto para o trâmite e julgamento do recurso de apelação seja, também, suportado pelo autor, mesmo sendo ele o vencedor na sentença.

Essa situação, que parece injusta, foi enfrentada no Projeto de Lei nº 8.046/2010, votado e aprovado no Senado. A solução encontrada foi a de permitir que a sentença de primeiro grau produzisse efeitos práticos desde logo, ou seja, o autor receberia o bem da vida independentemente do recurso de apelação interposto que seria, assim, uma opção do réu. Mas, sabedor de que, a não ser em caso de extrema urgência, seu recurso não teria capacidade para impedir que o autor da ação desfrutasse dos efeitos concretos da sentença que lhe foi favorável.

Pensando em termos de duração de um processo, a medida parece lógica. Cada parte suportará o tempo do processo para buscar uma decisão judicial que lhe seja favorável e dela usufruir de forma ampla e eficaz. Para tanto, o autor, salvo nos casos de tutela antecipada, aguardará a prolação da sentença e o réu, o tempo necessário para o tribunal processar e julgar o seu recurso de apelação.

Gil Ferreira/SCO/STF / Gil Ferreira/SCO/STF
Aliás, não se inventou a roda. Apenas procurou-se albergar no projeto os princípios de justiça encartados na Constituição. No caso, respeitou-se a previsão da duração razoável do processo. É mais do que chegada a hora de realmente se trabalhar com o decantado processo constitucional.

Essa previsão no projeto, que retirou do recurso de apelação o seu denominado “efeito suspensivo”, foi vista, por alguns processualistas, como uma forma de aumentar o poder do juiz, cunhando a expressão “ditadura do Judiciário”. A discussão, então, ficou na superficialidade do problema. Partiu-se apenas de meras suposições e de uma desconfiança desmedida no juiz de primeiro grau.

Essas conjecturas bastaram para, na Câmara dos Deputados, ser o artigo rejeitado e voltar ao que era antes, ou seja, necessidade do duplo grau de jurisdição para o autor ter efetivo acesso ao bem da vida, alvo do litígio. O juízo de primeiro grau continua sendo apenas uma “jurisdição de passagem” e a sentença, um mero parecer aguardando a verdadeira “decisão” que, em última análise, será do réu, de permitir ou não a realização do trânsito em julgado.

Em resumo, no novo, prestigiou-se o velho, manteve-se a morosidade em detrimento da efetividade e continuou-se a privilegiar uma parte, no caso o réu, em detrimento do autor que demonstrou, desde a inicial, ter razão.

Eis a eterna contradição humana aqui presente. Mesmo brandindo por efetividade, o “processualista” preferiu a calmaria do conservadorismo e manter o vetusto procedimento comum e sua desigualdade inerente.

A Câmara dos Deputados viu o novo com o olhar do velho e, assim, acreditando ter inovado, transformou-o em velho. Não se trata, pois, de substituir a vinha do Senhor pela vinha do Diabo, mas de se perquirir a que melhor atende à sede do povo, com a advertência de Machado de Assis de que a Igreja do Diabo era formalmente perfeita, contudo, humanamente contraditória.

Benedito Cerezzo Pereira Filho, doutor em Direito pela UFPR, professor de direito processual civil da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, é membro da comissão de juristas que instituiu o Projeto do novo Código de Processo Civil.

 

 
Fonte: Valor Econômico

 

Saiba como e quais as vantagens
de se associar ao Sescon MG



    * campos obrigatórios